Infelizmente, está virando um padrão. Fabricantes de smartphone anunciam aparelhos para o Brasil com certas especificações técnicas e, tempos depois, eles chegam com alguma diferença. Essa prática de lançamento de mais de uma configuração para dispositivo é relativamente comum, com alguns mercados sempre prejudicados dessa forma, mas só recentemente o Brasil foi incluído entre os países “premiados”.
E a situação desfavorável não acaba aí. Mesmo com essas pioras, o preço não só não para de subir como deu uma disparada violenta na última geração de dispositivos — hoje, você não encontra um top de linha recém-anunciado por menos de R$ 3 mil, com alguns já ultrapassando a linha dos R$ 3,5 mil.
Por que isso tem acontecido, qual é a solução para o consumidor e algumas das respostas fornecidas pelas empresas é o que você encontra nesta matéria. Vamos abordar algumas das marcas que têm práticas semelhantes e tentar encontrar as explicações.
Sony: preço alto e catálogo reduzido
A japonesa Sony foi a mais recente marca a abandonar a produção nacional. Isso significa que eventuais benefícios deixam de existir e há a possibilidade de que os preços continuem subindo – a chance de redução atualmente é bastante pequena. A marca é uma das mais criticadas pelos altos valores praticados no mercado.
O catálogo brasileiro ainda ficará desfalcado: o Xperia X Performance, top de linha da atual família da marca, não será lançado no Brasil. A justificativa da empresa é que o diferencial do modelo, o suporte à tecnologia 4G de três portadoras (LTE Cat 9), ainda não está disponível no Brasil. Assim, apenas mercados como Japão, Austrália e Estados Unidos receberão o dispositivo.
O que a Sony diz
Segundo um comunicado enviado pela Sony Mobile, “a estratégia de importação de produtos premium permanece a mesma desde o final do ano passado”, o que significa que desde os modelos Xperia Z5 e Xperia Z5 Premium esse método foi adotado.
“A marca permanece comprometida com o mercado brasileiro”, esclarece a empresa. Em questão de datas, isso tem mesmo sido seguido: a pré-venda dos modelos Xperia X e Xperia XA começou na metade de junho, junto com o lançamento mundial dos dispositivos. Eles custam R$ 3,8 mil e R$ 1,8 mil, respectivamente.
A marca permanece comprometida com o mercado brasileiro
Para compensar, a Sony avisa que já há um aparelho por aqui no segmento conhecido como super premium. “O Xperia Z5 Premium faz parte do portfólio nacional, lançado no início deste ano, e é um produto bem robusto”, justifica a empresa. Só que há um problema nesse caso: apesar de boas especificações técnicas e da tela 4K, o Xperia Z5 Premium é inferior ao X Performance em processador, câmera frontal e sistema operacional.
Em média, o Xperia Z5 tradicional (apresentado em setembro de 2015) sai por R$ 3,4 mil. Já o modelo Z5 Premium (lançado em 2016 no Brasil) custa R$ 4.699 na loja oficial da Sony.
LG: o G5 “Special Edition”
O caso que mais causou indignação no consumidor brasileiro em 2016 foi em relação ao LG G5. O smartphone tem características de top de linha e traz vários módulos que amplificam características do aparelho, mas foi anunciado para o Brasil como o LG G5 SE – uma versão com hardware piorado em vários aspectos.
Mudaram processador (do Snapdragon 820 para o Snapdragon 652), GPU (Adreno 530 para Adreno 510) e memória RAM (4 GB para 3 GB) — e isso impacta o desempenho do dispositivo, o processamento gráfico e até a economia de energia. Além disso, da família de módulos e acessórios, ficamos sem o LG Smart Controller, o LG 360 VR e o LG Rolling Bot, justamente por causa da menor capacidade de processamento, incompatível com esses produtos.
As mudanças impactam o desempenho do dispositivo, o processamento gráfico e até a economia de energia
A fúria do consumidor só aumentou quando o preço do aparelho foi divulgado: R$ 3.499, um valor bastante alto. É claro que o LG G5 SE, mesmo com a perda de potência, ainda é um dispositivo premium. Porém, o brasileiro esperava ao menos um corte no valor por conta das alterações. Vale lembrar que os módulos e acessórios também chegaram com valores elevados: R$ 649 no Cam Plus (para fotografia), R$ 1.299 no HiFi Plus (de áudio), R$ 1.799 na LG Cam 360 e R$ 1.399 no fone de ouvido B&O.
A posição da LG
Em comunicado enviado, para a matéria de comparação entre os modelos, a fabricante deixou claro que o Brasil não é o único país a receber a segunda versão. De acordo com o gerente de produto mobile da LG Electronics do Brasil, Marcelo Santos, o G5 SE “apresenta todas as características premium da Família G, somadas ao design inovador e ao acabamento luxuoso, assim como seu inovador e único conceito modular”.
Quando perguntamos se há planos para trazer o LG G5 “Super Premium” para cá, ele disse que o foco da companhia é mesmo no SE. Santos ainda deixa claro que a fabricante não considera o G5 SE como inferior, sendo um “modelo único que foi selecionado para atender mercados consumidores em diversos países ao redor do mundo”, inclusive com material de revestimento de enorme durabilidade e alta resistência à corrosão. Ele lembra ainda que vários recursos do G5 SE não estão disponíveis na concorrência, como câmera Wide Angle de 135º (a maior do mundo na categoria) e o design modular.
Motorola Moto Z: menos poder de fogo
O consumidor brasileiro ficou desconfiado quando a Motorola anunciou o Moto Z durante o evento Lenovo Tech World 2016 com uma configuração de processador, mas, quando as especificações da versão brasileira saíram, havia uma pequena diferença. O processador do smartphone, um Snapdragon 820, foi anunciado no evento tendo clock de 2,2 GHz. Porém, posteriormente ficamos sabendo que o aparelho que desembarcaria aqui possui clock de 1,8 GHz.
Embora a redução de apenas 20% na velocidade do processador não traga reflexos negativos intensos na prática nem seja notado por boa parte dos consumidores, não tem como não se sentir prejudicado à primeira vista.
Resposta da Motorola
Segundo a fabricante, a opção com 2,2 GHz será comercializada apenas nos Estados Unidos, em uma versão especial em parceria com a operadora Verizon. Em todos os outros mercados (ou seja, de Europa e Ásia até a América Latina), o processador terá o clock em 1,8 GHz, que é o valor “oficial”.
Apenas a versão dos Estados Unidos tem o clock em 2,2 GHz
O gerente de produtos mobile da Lenovo, Renato Arradi, confirmou que pode existir alguma diferença de desempenho, mas que ela dificilmente será notada. Contudo, fica a pergunta: afinal, por que não aproveitar e lançar a versão mais poderosa em todos os mercados?
Meizu: só na parceria
O caso da fabricante chinesa Meizu é diferente e não prejudica o hardware do smartphone, mas sim o bolso do consumidor. Os dispositivos chegam com as mesmas especificações lá de fora, mas são vendidos por aqui somente a partir de uma parceria com a distribuidora Vi. Desse modo, não dá para comprar apenas o smartphone avulso, mas sim como parte de um pacote chamado Phonestation.
É o caso do M2 Note. Ele chega com uma bateria portátil que funciona como “teclado a laser Bluetooth” e um adaptador Miracast para TVs e monitores. Os acessórios elevam o preço do modelo, que é intermediário e acaba saindo por R$ 1,9 mil.
Assim, a estratégia é uma faca de dois gumes: devemos comemorar a vinda da Meizu para o Brasil, pois significa vontade da marca de investir aqui. Porém, você não pode levar para casa só o smartphone, mas sim toda a “estação de trabalho” vendida. Quem quer os acessórios sai ganhando, mas o consumidor que não está interessado neles fica sem escolha.
Resposta da Meizu
Foi realizado contato com a Vi/Meizu por meio da assessoria, mas a empresa não forneceu uma resposta.
Os prováveis motivos
Após reunir os casos de smartphones que vieram modificados ou que são “adaptados” para o mercado brasileiro, levantamos quais seriam as causas para o lançamento de modelos diferenciados para o país. Dependendo da fabricante, vários deles são combinados para justificar a mudança de estratégia.
Lei do Bem
Um dos fatores que podem reduzir o preço de smartphones no Brasil é a Lei 11.196/05, também chamada de “Lei do Bem”. Basicamente, trata-se de um incentivo fiscal do Governo Federal às empresas que fabricam eletrônicos no país ou realizam ações de pesquisa e desenvolvimento. Ela é uma desoneração do PIS/COFINS a vários produtos de informática.
Com o fim da Lei do Bem, fabricantes estão com um pé atrás em relação ao Brasil em longo prazo
Após uma proibição do Congresso Nacional, ela atualmente está em vigor, graças a uma liminar da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), o que significa que companhias vinculadas à instituição de fato já podem vender aparelhos por um menor preço. Porém, não é isso que temos visto na prática hoje, já que o valor também depende de outros fatores, como mercado externo e flutuação de moedas (tanto o Real quanto as estrangeiras).
Além disso, ela já tem data para acabar: a lei deixa de valer a partir de 31 dezembro de 2018. Isso já deixa as fabricantes com um pé atrás em relação aos valores no Brasil em longo prazo – e foi justamente uma das respostas dadas pela Sony.
A tecnologia do 4G
O 4G é quase sempre mencionado como se fosse uma coisa só, mas existem várias categorias diferentes para catalogar os planos de dados LTE (Long Term Evolution, na sigla original). A tecnologia LTE é dividida em categorias de acordo com velocidade de transferência de dados e um conjunto de técnicas de transmissão: quanto maior o número, mais avançada é a rede. A ideia é que todos os dispositivos de uma mesma geração tenham suporte a uma mesma categoria, para que mercados não fiquem prejudicados, mas há outro fator envolvido aí: os países precisam estar adaptados às mesmas categorias também.
O Brasil precisa acelerar a implementação do 4G de categorias superiores
É aí que reside o problema do Brasil. O LTE Cat. 9, que é usado no Xperia X Performance, por exemplo, ainda não é suportado por aqui. Assim, a Sony achou melhor nem apresentar o aparelho em solo brasileiro, já que não há compatibilidade com esse recurso — um dos que fazem o smartphone ser tão poderoso. O mesmo vale para a Meizu: no fim de 2015, veio o smartphone MX4, e não o badalado MX5, justamente pelo mesmo motivo de rede.
E a situação fica mais complicada: cada vez mais fabricantes devem apresentar produtos com LTE Cat.9 como padrão, o que significa que o país, caso não aja rapidamente, pode ficar sem outros lançamentos em um futuro próximo.
Exigências de operadoras gringas
Esse motivo está diretamente relacionado com o anterior. Algumas operadoras, especialmente norte-americanas ou japonesas, realizam parcerias de lançamento ou contrato diretamente com as fabricantes e, em alguns casos, podem demandar alterações em especificações técnicas. O motivo pode ser alguma incompatibilidade de rede (como a questão do 4G) ou necessidade de trazer um diferencial ao consumidor para sair na frente de outras marcas.
Algumas das gigantes das telecomunicações dos EUA
Elas também podem fazer parcerias de lançamento com as fabricantes, em um modelo de contrato que deixa você bem mais “preso” à companhia do que segundo os planos do Brasil. Assim, um dispositivo acaba chegando no mercado dos EUA em uma só empresa de telefonia antes das outras, e esse esquema de aliança pode acabar gerando até mesmo alterações de hardware. É o caso da Verizon com a Lenovo, resultando em um Moto Z com clock intensificado para atender a exigências de rede da marca.
O perfil do mercado brasileiro
A questão de mercado também deve ser levada em conta: apesar de registrar crescimentos elevados durante os últimos cinco anos, o comércio global de smartphones deixou de crescer pela primeira vez na história nos três primeiros meses de 2016. O motivo seria uma aparente saturação do mercado em várias regiões, com dispositivos em excesso e muito parecidos entre si, diluindo as vendas entre as fabricantes e reduzindo receitas individuais. De acordo com a IDC, o brasileiro até tem separado mais do orçamento para celulares, mas até quanto isso significa mais vontade de gastar, e não um sacrifício para comprar os novos (e cada vez mais caros) lançamentos?
Segundo outra pesquisa da IDC publicada em novembro de 2015, os aparelhos que custam entre R$ 700 e R$ 900 ainda são os mais vendidos no Brasil. De acordo com a plataforma de comparação de preços Zoom, nenhum smartphone entre os mais buscados de junho de 2016 ultrapassa os R$ 1,7 mil reais. Essa aparente aversão do público nacional a dispositivos mais poderosos — que acabam chegando caros demais por aqui, agora por mais de R$ 3,5 mil — pode justificar a ausência de modelos ou a redução de hardware.
Não é tudo tão ruim?
Afinal, existe algum motivo para o consumidor brasileiro comemorar em relação ao mercado local de smartphones? Segundo o gerente da Motorola, sim. De acordo com Renato Arradi, também recebemos aparelhos que são, de alguma forma, modificados para melhor agradar o consumidor. É o caso do Moto G4 e de inúmeros outros aparelhos de diversas fabricantes, que apresentam recursos como TV digital e Dual-SIM.
Essas duas funções, que caíram no gosto do brasileiro há algum tempo, fazem com que nossos aparelhos sejam considerados “versões superiores” em relação a alguns modelos no exterior. É claro que aí depende bastante do que mais importa para você: ter mais clock de processamento ou suporte para um segundo chip telefônico.