Jogo inaugurou o uso em grande escala de tecnologia de realidade aumentada, que pode se tornar o novo tipo de interface pela qual conectamos informações digitais e mundo real
O caos tomou conta do Central Park, em Nova York, no dia 15 de julho. Nas imagens, centenas de pessoas são vistas correndo em bandos em diração ao parque, com celulares na mão, para “capturar” um pokémon raro avistado ali: o Vaporeon.
Cenas como essas viralizaram. Pokémon Go, o jogo recém lançado pela produtora Niantic, e todos os desdobramentos que a chegada dele causou, viraram assunto nas mesas de bar, nos campos de comentários e nas manchetes de jornais – mesmo no Brasil, onde ainda não foi lançado.
Pokémon Go é um jogo de realidade aumentada que coloca uma camada de fantasia – a do universo de Pokémon – sobreposta ao mundo real. Os jogadores apontam o celular para o mundo e, com ele, enxergam pokémons na tela para serem capturados. Também veem centros de treinamento e ginásios de batalha. Para capturarem os monstros, precisam se deslocar fisicamente até onde eles estão no mapa.
Especialistas em jogos, tecnologia e cultura digital estão espantados com a repercussão do jogo – e preveem que Pokémon Go já possa ser considerado o fenômeno de massa que vai inaugurar uma nova era para a interface homem-máquina.
A história da realidade aumentada
A realidade aumentada, tecnologia usada no Pokémon Go, não foi criada pela produtora do jogo. Na verdade, há aplicações que usam esse tipo de recurso no celular desde, aproximadamente, 2010.
“Realidade aumentada é o ‘Pedro e o lobo’ do mundo pós internet – está há tempos sendo prometida [como a próxima grande tendência], mas nunca foi desenvolvida de uma maneira satisfatória.”
Om Malik
Em artigo da revista ‘The New Yorker’, comparando o aplicativo à metáfora da história infantil
Trata-se de um conceito diferente da ‘realidade virtual’, já que realidade aumentada usa o mundo real para sobrepôr a ele camadas de elementos novos, enquanto a realidade virtual substitui completamente aquilo que vemos por uma simulação.
Há aplicativos populares que usam realidade aumentada, como o Starwalk, que identifica e fornece informações sobre planetas, estrelas, galáxias e constelações quando apontado para o céu, e o Yelp, programa de avaliação de estabelecimentos comerciais que informa a qualificação de serviços quando você aponta o celular para um restaurante ou loja, por exemplo.
Grandes marcas, como a Lego e a Moleskine, também produziram aplicações de realidade aumentada nos últimos anos. E o Google Glass, óculos do Google de 2012 que sobrepõe informações digitais ao que o usuário vê, também é um exemplo de uso de realidade aumentada.
A diferença é que nenhuma delas foi capaz de mobilizar tanta gente quanto Pokémon Go, nem afetou os hábitos cotidianos dos usuários. Na internet, há milhares de relatos de gente que, depois de virar um “treinador” em Pokémon Go, passou a sair mais de casa e a fazer mais exercícios físicos, por exemplo – sem contar as outras consequências, boas e ruins, que surgiram da exploração massiva de espaços físicos.
Ingress, o jogo-cobaia
O jogo que chegou mais perto de fazer isso antes de Pokémon Go se chama Ingress, e não por coincidência, é da mesma desenvolvedora de Pokémon Go. Lançado em 2013 para Android e iOS, o Ingress simula um universo em que jogadores fazem parte de facções rivais que precisam controlar portais de energia.
Para fazer isso, é preciso ir até esses portais, normalmente localizados em pontos de interesse em grandes cidades, como estátuas, monumentos, praças e edifícios históricos.
Ingress não ganhou popularidade mainstream, mas à sua maneira, se tornou cult entre um grupo específico de usuários. Ele herda como característica principal a lógica de outro jogo mais antigo, o geocashing.
O geocashing é uma espécie de caça ao tesouro. Em fóruns específicos, os jogadores dão pistas e coordenadas de um ponto físico no mundo real. O objetivo é chegar a este ponto e encontrar uma pequena cápsula escondida – dentro dela, há um registro com os nomes de quem já encontrou a cápsula e a data.
Dele, veio a lógica principal por trás do Ingress, que permitiu que seus desenvolvedores adaptassem esse conceito para Pokémon Go – a diferença é que esses últimos usam a plataforma digital para integrar as informações, o que enriquece a experiência.
De onde vem tanta popularidade
A popularidade do Pokémon Go, sugerem analistas, se deve à união entre uma franquia poderosa e com apelo entre a geração millennial, dispositivos com alto poder de processamento (os smartphones modernos), uma interface amigável de realidade aumentada e os recursos do jogo, que obrigam que o usuário saia de casa e explore o mundo ao redor.
O jogo pode ser o empurrão que faltava para que as pessoas se sintam confortáveis com esse tipo de tecnologia e, mais importante, queiram interagir com o mundo usando camadas de informação digital. Além disso, deve encorajar outros desenvolvedores e plataformas a pensarem em produtos realmente úteis que usem realidade aumentada. E as possibilidades são infinitas.
Veja exemplos de aplicações que podem mudar a maneira como nos relacionamos com o mundo e, ao menos tecnologicamente, já são possíveis:
Possíveis aplicações de realidade aumentada no futuro
- Um aplicativo de arte e história que, quando apontado para um quadro em um museu, permite que você aponte para elementos no quadro e explica, por áudio ou com um balão de texto, o contexto e a história da obra.
- Um filme que mostra cenas sobrepostas ao relevo urbano, apenas se você apontar o celular para os pontos corretos.
- Um aplicativo de transporte urbano que identifica, no ponto de ônibus, qual o destino do ônibus que está vindo e a que horas vem o próximo.
- Um aplicativo de turismo e navegação urbana que conta a história da fundação e desenvolvimento de uma cidade, substituindo prédios por suas versões antigas, dependendo da era que o usuário selecionar.
- Um aplicativo que conta a história de determinado evento marcante no espaço urbano. Basta apontar para uma praça ou campo que foi palco para um evento histórico, e o aplicativo identifica e sobrepõe a imagem com os personagens, objetos e acontecimentos.
Aplicativos com informações que nos ajudam a entender questões como essas já estão disponíveis, mas não em formato de realidade aumentada. E é esse o trunfo de Pokémon Go: criar um momento propício para a transição do uso tradicional da interface digital, de textos e imagens em telas, para uma interface com elementos que se sobrepõem e de alguma maneira interagem, contextualmente, com o mundo real.
Quebra de paradigma na interface homem-máquina
Para entender a importância dessa mudança, pense na revolução da tela sensível ao toque. Essa mudança de paradigma é um bom exemplo de como, em pouco tempo, mudamos completamente a maneira como esperamos nos relacionar com telas – prova disso são crianças nascidas na segunda década dos anos 2000, que frequentemente são vistas tentando usar a tela da TV usando o dedo.
Antes do lançamento do iPhone, em 2007, já existiam telas sensíveis ao toque em smartphones. Nenhuma, no entanto, era tão precisa e oferecia uma experiência tão intuitiva para o usuário, com comandos por toques simples, como ampliar com um gesto dos dedos.
Além disso, os conteúdos não eram feitos para serem lidos nesse formato. Além de introduzir essa nova tecnologia, a Apple lançou uma versão móvel do Safari, seu navegador, que convertia o conteúdo da web para uma versão mais fácil de visualizar e interagir.
Depois do iPhone, os parâmetros sobre a interface de um smartphone foram redefinidos. Todo mundo usa telas sensíveis ao toque para interagir com celulares, em alguns casos até com computadores – e um celular com teclado e setas não faz mais sentido.
O Pokémon Go tem boas chances de se tornar o que o iPhone foi em 2007 para a interação homem-máquina: o veículo de mudança do paradigma.
Em filmes de ficção científica, não é raro que personagens do futuro interajam com o mundo digital não com dispositivos físicos, mas por meio de quadros de informação suspensos no ar, ou sobrepostos em imagens por meio das lentes de óculos superfuturistas.
Isso acontece em filmes como “Robocop”, “Minority Report” e “Exterminador do Futuro”, e é um bom exemplo de realidade aumentada. É possível imaginar as aplicações dessa tecnologia no futuro usando a ficção como referência.
Vale notar que Pokémon Go é uma espécie de “primo simples” da realidade aumentada, apenas uma demonstração de todo potencial desse tipo de tecnologia.
Com o avanço do poder de processamento dos celulares e criação de dispositivos exclusivos para esse tipo de interação, as sobreposições serão muito mais inteligentes e baseadas em contexto. As aplicações do futuro terão capacidade mais apurada de identificar o que está na tela e fornecer elementos gráficos e informações que se adequem àquilo de maneira mais realista.
Para Pokémon Go, isso significa que, em vez de mostrar pokémons esperando para serem capturados na calçada, por exemplo, o jogo será capaz de fazê-los interagir com os prédios: subir pelas paredes, dar uma pirueta em volta de um hidrante e desviar de um carro em alta velocidade ao atravessar a rua.
Para outros aplicativos e propósitos, significa que olhar para o mundo por meio de uma tela pode se tornar uma experiência mais rica e cheia de camadas- que vão permitir identificar e consumir lazer, entretenimento, educação e serviços de maneira inteiramente visual.