A pandemia de covid convenceu empreendedores sobre a viabilidade do trabalho fora do escritório. Mas nos últimos anos surgiram testes para ir além, com a redução da jornada semanal de trabalho. O principal argumento por trás disso é aumentar o bem-estar dos trabalhadores, que responderiam com mais motivação no emprego. Com isso, eles manteriam a mesma produtividade ou, no pior cenário, teriam perdas mínimas.
A notícia mais recente neste sentido veio do Reino Unido. O país começou em junho um projeto piloto com 3.300 trabalhadores de 70 empresas, de áreas que vão a treinamento de software a restaurantes de peixe com fritas. Eles receberão por seis meses 100% de seu salário, mas trabalharão apenas quatro dias por semana. Em troca, tentarão manter 100% de sua produtividade anterior, obtida com cinco dias de trabalho por semana. Os testes foram apoiados pelo governo e devem começar ainda este ano na Espanha e na Escócia.
A 4 Day Week Global é a ONG responsável pela empreitada no Reino Unido e tenta obter apoio de mais companhias para fazer testes nos EUA e Canadá. A organização foi cofundada por Andrew Barnes, chefe da empresa neozelandesa do ramo imobiliário Perpetual Guardian. Após ler vários artigos sobre produtividade, Barnes iniciou em março de 2018 um teste de oito semanas com todos os seus 240 funcionários na época, que ganharam um dia de folga remunerado por semana.
Os resultados anunciados pela empresa foram avaliados por duas universidades de Auckland. Os níveis de engajamento aumentaram entre 30 e 40%; as métricas de equilíbrio trabalho-vida cresceu 44%; e o compromisso organizacional subiu 29%.
A Islândia também havia feito dois testes entre 2015 e 2019, com 2.500 funcionários do setor público trabalhando quatro dias por semana. A produtividade permaneceu a mesma ou melhorou na maioria dos locais de trabalho, disseram os pesquisadores.
E a tendência segue em mais países. Em agosto, 20 empresas da Austrália e Nova Zelândia farão a semana de trabalho de quatro das por seis meses. Os Emirados Árabes Unidos reduziram a duração da semana de trabalho no setor público desde janeiro.
Como é possível trabalhar menos tempo e render mais?
No estudo da Perpetual Guardian, Barnes justificou sua decisão de reduzir a jornada de trabalho: “(Foi) a coisa certa a fazer. Nós queremos pessoas que sejam o melhor que podem ser enquanto estão no escritório, mas também em casa. É a solução natural”.
A Constituição brasileira garante a duração máxima de oito horas diárias e 44 horas semanais na jornada de trabalho e já prevê a redução de jornada. Então, não haveria a necessidade de criação de uma lei específica, desde que não reduza o salário. Se a ideia for reduzir o tempo máximo de jornada de trabalho como um todo, só seria possível por meio de uma emenda constitucional, com votos favoráveis de três quintos dos deputados (308 votos) e dos senadores (49 votos). Existe até um estudo do Dieese com essa proposta, realizado em 2010.
Em entrevista ao Canaltech por e-mail, Joe O’Connor, CEO da 4 Day Week Global, disse que o modelo é viável, mas deve ser popularizado sem que seja preciso mudar as leis trabalhistas, pelo menos por enquanto.
A semana de trabalho de cinco dias surgiu em diferentes indústrias e países ao longo de um período de 30 a 40 anos, e foi só no final desse ciclo, quando já estava popularizada, que a legislação foi criada para integrá-la. Olhando agora para a semana de quatro dias, não somos da opinião de que estamos atualmente no estágio do ciclo em que introduziríamos legislação para aplicá-la em todas as partes da economia.
Ele vê quatro diferentes frentes do poder público para viabilizar o formato:
- Governos podem apoiar programas-piloto, administrando-os diretamente no serviço público e civil ou facilitando testes em empresas privadas por meio de doações e subsídios;
- Incentivar pesquisas a partir dos programas-piloto para analisar o impacto na empresa e nos trabalhadores, além do envolvimento do governo para analisar indicadores macroeconômicos, sociais e ambientais;
- Detectar áreas que precisarão de mais intervenção para uma transição suave para uma semana de trabalho mais curta, como agricultura e hospitais, criando condições necessárias para apoiar a mudança;
- Por fim, trazer as primeiras leis nesse sentido para que as empresas reduzam a jornada de trabalho sem afetar negativamente a empresa ou os empregados, sem mexer em contribuições previdenciárias, férias anuais, seguro de saúde e outros benefícios.
Para Adriana Caldana, professora de adminstração da FEA-RP/USP, essa tendência não deverá fluir com facilidade na realidade brasileira. “É muito difícil a gente pensar que algumas empresas fariam isso sem reduzir salário. A gente já está tendo tanto arrocho, e se as empresas olharem para isso como mais uma possibilidade de redução salarial, acho que isso ainda vai ser mais crítico”.
Outro desafio seria implementar o modelo em todas as áreas produtivas e em todos os níveis hierárquicos. “Embora o maior impulso esteja em setores tradicionalmente baseados em escritórios, como finanças, TI, software e serviços profissionais, vemos exemplos onde a semana de trabalho mais curta também funcionou em áreas como manufatura, varejo e hotelaria”, diz O’Connor. “No segmento de trabalhadores mais braçais, talvez tenha se que fazer novas contratações para poder dividir as semanas [de trabalho]”, argumenta Caldana.
Luciana Romano Morilas, professora da FEA-RP/USP especializada em direito trabalhista, acredita que seria um “preconceito” imaginar que só profissionais de níveis mais altos possam ter a jornada reduzida.
Com o tipo de trabalho que exige menor qualificação, há mais profissionais disponíveis e, portanto, pode haver outros contratados para a mesma função sem perda da qualidade do trabalho prestado. O aumento da tecnologia e o conceito de dignidade da pessoa humana podem garantir essa redução de jornada como um direito que pode gerar um grande movimento para a economia, não o oposto, como se imagina numa análise mais descuidada.
E no Brasil?
Algumas empresas tomaram a iniciativa de realizarem seus próprios testes por conta e risco. A NovaHaus, empresa de tecnologia com sede em Franca (SP), adotou em março o modelo de trabalho com quatro dias por semana e permanecerá assim até outubro. O primeiro indício positivo, diz a companhia, foi a diminuição em 100% da rotatividade de funcionários, mesmo com profissionais recebendo boas propostas em outros lugares.
“No início, muitos funcionários ficaram desconfiados e evitaram fazer compromissos na quarta-feira, mas, depois que viram que a empresa estava satisfeita com as entregas feitas nos quatro dias de trabalho, perceberam que já não era mais uma experiência”, detalha Leandro Pires, CEO da NovaHaus. O experimento levou quase um ano de planejamento e estudos preliminares.
O ganho na produtividade equivalente ao dia não trabalhado aconteceu? “Em alguns casos, vimos que sim e, em outros, não, mas a média foi mais alta do que imaginávamos”, disse Pires. Houve ainda uma queda de 5% nas entregas, mas isso dentro de uma diminuição de 20% da carga horária. “Isso significa que estamos tendo um aumento considerável na produtividade. Não encaramos essa diminuição como prejuízo, ela foi compensada pela redução da rotatividade, que foi enorme”, argumenta.
A martech fluminense Winnin também seguiu a tendência em agosto do ano passado e continua até hoje. Em fevereiro, fez uma análise e percebeu que o equilíbrio entre vida pessoal e profissional dos funcionários melhorou 17,33% em relação ao período antes do experimento. A atenção à saúde mental e física cresceu 41,93%, e a produtividade, 5,68%.
“Basicamente aprendemos que alguns times se encaixaram ao novo modelo com mais facilidade e rapidez do que outros, principalmente em função do quão organizados eles já eram. Também percebemos que a disciplina de mensurar a produtividade se perde e estamos em busca de retomar isso”, diz o CEO da Winnin, Gian Martinez.
Já os funcionários não têm muito do que reclamar da experiência. Leandro Cesar Silva, desenvolvedor da NovaHaus, afirma só ter tido impactos positivos. “O principal foi a diminuição do cansaço mental. Antes chegava ao final do dia completamente esgotado. Agora, todos os dias consigo manter o mesmo rendimento e muito menos cansado ao final do expediente. Com o dia livre, voltei a ter o hábito de leitura e estou indo mais ao cinema.”
Marie Mamedes, analista de marketing da Winnin, aponta como benefícios estar sempre refletindo sobre os processos e vícios do trabalho que diminuem a produtividade, “como por exemplo as famosas ‘reuniōes que poderiam ser um e-mail'”, brinca, e o maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional, pois o dia livre permite marcar consultas médicas, começar um curso ou “simplesmente descansar a mente e aproveitar dos benefícios do ócio criativo”.
“Medir o volume de horas trabalhadas é muito fácil; fazemos isso, enquanto sociedade, há décadas. Mas mensurar a produtividade no âmbito do entregável ainda é subjetivo e relativo. Então, existe muito a ser feito dentro das próprias empresas para que tenham ambientes favoráveis à redução da jornada”, define Pires, da NovaHaus.
Fonte: Canaltech
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